A história da corrida de rua mais tradicional do país não pode ser contada sem mencionar Alfredo Gomes. Essa é a convicção do advogado, historiador e escritor Antônio Carlos de Paula, neto do atleta. E não sem razão: foi dele o primeiro troféu da São Silvestre, conquistado em 1924, quando a prova ainda engatinhava e não imaginava chegar ao centenário celebrado nesta quarta-feira. O feito abriu caminhos e consolidou o nome de Gomes como um dos maiores esportistas brasileiros do período.
Nascido em Areias, no interior de São Paulo, Alfredo destacou-se nas pistas ao longo dos anos 1920. Além do título inaugural, terminou vice-campeão em 1926 e 1927, e subiu ao pódio em 1928, fechando o ciclo como terceiro colocado. Por trás das marcas, há uma narrativa de superação, protagonismo e apagamentos históricos. Gomes não só brilhou na São Silvestre como foi o primeiro atleta negro brasileiro a participar dos Jogos Olímpicos, em Paris, naquele mesmo 1924.
A trajetória olímpica e a luta contra o preconceito institucional
Sua ida aos Jogos ocorreu em um contexto adverso. Três anos antes, o então presidente Epitácio Pessoa havia determinado a exclusão de atletas negros das convocações. A postura racista ignorava o desempenho esportivo, mas não foi capaz de impedir a ascensão de Alfredo. O avô de AC de Paula não apenas conseguiu a vaga como foi escolhido porta-bandeira da delegação brasileira. Ele disputou diversas provas, chegando ao sexto lugar em uma delas, e abandonou o cross country sob um calor extremo de 45ºC que tirou mais de metade dos competidores da pista.
A viagem olímpica só se concretizou graças a uma mobilização particular. Um jornalista do jornal O Estado de São Paulo organizou uma vaquinha que custeou os gastos, já que o atleta não tinha apoio público. O retorno ao Brasil acabou adiado por seis meses, após a eclosão da Revolução dos Tenentes, obrigando os competidores a permanecer na Europa. O período, porém, rendeu trocas culturais e o aprendizado de vários idiomas. Foi ali que Alfredo conheceu o italiano Heitor Blasi, seu maior rival na década e vencedor da segunda edição da São Silvestre.
Muitos atlestas gostam de se vestir representando suas origens durante a corrida (Foto: reprodução/Getty Images Embed/MIGUEL SCHINCARIOL)
Do anonimato à reconstrução da memória esportiva
A carreira começou de maneira improvável, em 1919, durante um piquenique na represa de Guarapiranga, quando venceu uma corrida improvisada e recebeu como prêmio uma caixa de charutos. O episódio bastou para que ele se apaixonasse pelo atletismo, sendo apadrinhado pelo Clube Esperia, que preserva grande parte de seu acervo até hoje. Entre 1920 e 1930, acumulou vitórias que o transformaram em um fenômeno nacional.
Por décadas, no entanto, sua história foi pouco lembrada. A própria organização da São Silvestre carece de registros precisos sobre a primeira edição, e há divergências até sobre o percurso. Na cidade natal, a população pouco conhecia o legado do atleta até o início de um movimento liderado pela família. Hoje, Areias tem uma exposição permanente, um projeto esportivo com seu nome e realiza a “Corrida Alfredo Gomes”, que chegou à terceira edição.
Alfredo Gomes foi o ganhador da primeira edição da Corrida de São Silvestre (Vídeo: reprodução/YouTube/Goool de Placa)
O impacto atravessou gerações. Walter Gomes, neto do pioneiro, prometeu ainda jovem correr a São Silvestre em sua homenagem. Cumpriu a escolha em 2015, aos 63 anos, depois de repensar a própria vida e adotar o esporte. Atualmente com 73, soma 60 provas apenas neste ano e participa novamente da corrida comemorativa. Para ele, competir é reencontrar o avô a cada quilômetro percorrido.
Um legado que inspira e resiste
O apagamento gradual da figura de Alfredo Gomes contrasta com a grandiosidade de sua biografia. Ele abriu portas em um país que lhe negava espaço, ergueu a bandeira brasileira quando poucos o aceitavam como representante e inaugurou uma tradição esportiva que hoje move multidões. À sombra de uma história oficial incompleta, a memória de Gomes ressurge amparada pela família, por pesquisadores e pela força simbólica de suas conquistas. Na centésima São Silvestre, Alfredo finalmente volta ao centro da narrativa que ele próprio iniciou. E reforça a tese do neto, que ecoa como um chamado à preservação histórica: não dá para falar da São Silvestre sem falar de Alfredo Gomes.
