O coração dos que cuidam também está em risco. Diversas pesquisas internacionais, conduzidaspor sociedades médicas como a American College of Cardiology (ACC), indicam que mais da metade dos profissionais de cardiologia e ecocardiografia apresentam sinais de burnout — uma exaustão física e emocional que ameaça tanto a saúde do médico quanto a qualidade do atendimento ao paciente.
Nos serviços de imagem cardiovascular, onde a precisão e a concentração são vitais, a pressão é ainda mais intensa. O burnout, antes visto como um problema isolado, tornou-se um fenômenosistêmico: afeta médicos, enfermeiros e tecnólogos que lidam diariamente com alta carga de exames, prazos curtos e decisões críticas.
As causas são múltiplas: sobrecarga de trabalho, escassez de pessoal especializado, pressãopor produtividade e excesso de tarefas administrativas. Some-se a isso o ambiente estressantee a falta de autonomia em estruturas hospitalares cada vez mais hierarquizadas — e o resultado é um ciclo de adoecimento silencioso.
O Dr. Alexandre Klita, cardiologista e coordenador do Departamento de ImagemCardiovascular da Unimed Chapecó, reconhece o problema e alerta que o fenômenoobservado nos Estados Unidos é apenas o reflexo de uma tendência global.
“Os dados americanos são um retrato ampliado do que já vivemos no Brasil. O volume de exames cresce ano após ano, mas o número de profissionais não acompanha. Estamos diante de uma sobrecarga contínua que afeta a qualidade do diagnóstico e a saúde mental de quem o realiza”, afirma.
O custo invisível da exaustão
O burnout vai além do cansaço. Ele se manifesta em fadiga crônica, perda de motivação, distanciamento emocional e sensação de ineficácia profissional. Em áreas de altacomplexidade como a ecocardiografia, onde o erro pode comprometer o tratamento de um paciente, as consequências são graves.
“Um profissional esgotado perde sensibilidade clínica. Trabalha no automático, e isso aumenta o risco de erro”, explica Klita. “A medicina cardiovascular exige atenção total, mas é impossívelmanter esse nível de exigência sem equilíbrio e apoio.”
Nos Estados Unidos, hospitais e sociedades médicas identificaram que o burnout estádiretamente associado a maior taxa de erros diagnósticos, absenteísmo e rotatividade de pessoal, além de queda na satisfação profissional e aumento de afastamentos por questõesemocionais.
A quarta meta: cuidar de quem cuida
O sistema de saúde americano, tradicionalmente focado em eficiência e custo, reconheceu quesem profissionais saudáveis não há qualidade assistencial possível. Assim surgiu a chamada “quarta meta” dos sistemas de saúde — ao lado de melhorar a saúde populacional, reduzir custos e aumentar a satisfação do paciente, surge a missão de promover o bem-estar dos profissionais de saúde.
Hospitais e clínicas passaram a adotar políticas de prevenção e suporte emocional, com pausasprogramadas, redistribuição de carga horária, automação de tarefas repetitivas e incentivo a programas de saúde mental.
Para Klita, essa visão precisa ultrapassar fronteiras:
“O cuidado com o profissional não é um luxo americano; é uma necessidade universal. No Brasil, precisamos adotar estratégias semelhantes se quisermos garantir a sustentabilidade dos serviços e preservar quem faz a engrenagem da saúde funcionar.”
Gestão: o verdadeiro antídoto
Klita ressalta que o burnout não é um problema de vocação, mas de gestão. “Os profissionais nãoestão menos comprometidos; estão sobrecarregados”, afirma. “A solução está em organizar o trabalho, não em exigir mais esforço.”
Entre as medidas que defende estão a redistribuição de tarefas, criação de equipes multidisciplinares, uso inteligente da tecnologia e implantação de protocolos de qualidade. O objetivo é aliviar a carga cognitiva dos profissionais e permitir que se concentrem no querealmente importa: o cuidado com o paciente.
“Um serviço eficiente é aquele que combina produtividade com humanidade. A gestão deveenxergar o profissional como um recurso vital, não como uma engrenagem substituível.”
Na Unimed Chapecó, onde atua, o departamento coordenado por Klita adotou medidas práticas: escalas rotativas mais equilibradas, revisão de fluxos administrativos e uso de automação emparte dos relatórios. “São ajustes simples, mas que trazem um impacto enorme no ambiente de trabalho e na motivação da equipe”, explica.
A tecnologia como aliada — e não como ameaça
O avanço da inteligência artificial tem sido apontado como uma possível ferramenta de alíviopara a carga de trabalho. Klita vê a IA como uma aliada valiosa, desde que usada com propósito:
“A automação de medições e relatórios libera tempo para o raciocínio clínico e o diálogo com o paciente. O problema é quando a tecnologia é mal implementada e se torna mais uma fonte de estresse, com sistemas lentos, falhas e sobreposição de tarefas.”
Para ele, a IA deve ser um suporte à decisão médica, não uma pressão adicional. “A medicinaé feita de empatia e julgamento clínico. Nenhum algoritmo substitui isso.”
O futuro: cuidar de quem cuida
O burnout entre cardiologistas e ecocardiografistas é um lembrete de que nenhum sistema de saúde pode funcionar à custa do esgotamento humano.
“A cardiologia cuida do coração, mas precisa aprender a proteger o seu próprio”, resume Klita. “O futuro do cuidado cardiovascular depende de reconhecer que o profissional também é paciente — e que sua saúde é parte essencial da qualidade assistencial.”
Em um setor onde o ritmo de trabalho é acelerado e o impacto das decisões é vital, cuidar de quem cuida deixou de ser um gesto de empatia. É uma questão de sobrevivência do sistema — e, sobretudo, da humanidade dentro dele.