Nos últimos anos, o futebol internacional tem sido palco de tragédias que levantam questões sérias sobre a responsabilidade dos clubes em relação à saúde de seus atletas. Casos como o de Fabrice Muamba, ressuscitado após 78 minutos de parada cardíaca, e de Piermario Morosini, que faleceu em campo, não são incidentes isolados. Recentemente, a morte do jogador uruguaio Juan Manuel Izquierdo, após colapsar em campo devido a uma arritmia cardíaca, reacendeu o debate sobre a necessidade de uma maior proteção aos atletas.
Esses eventos trazem à tona a discussão sobre a responsabilidade civil dos clubes de futebol em casos de acidentes de trabalho, especialmente aqueles que resultam em consequências tão drásticas como a morte de um jogador em campo.
O DEVER DOS CLUBES SEGUNDO A LEI
O atleta profissional é considerado empregado do clube, conforme disposto na Lei nº 9.615/98, conhecida como Lei Pelé. Essa legislação assegura direitos trabalhistas aos atletas, incluindo a obrigatoriedade de que o clube empregador contrate seguro de vida e de acidentes pessoais para cobrir os riscos inerentes à prática esportiva. O artigo 45 da Lei Pelé é categórico ao afirmar que os clubes são responsáveis por todas as despesas médicas e medicamentos necessários até que a indenização seja efetivada pela seguradora.
“O cumprimento dessas obrigações legais é essencial para a proteção dos atletas,” afirma o advogado Kevin de Sousa, sócio do escritório Sousa & Rosa Advogados. “O descumprimento dessas normas expõe os clubes a uma responsabilidade civil significativa, tanto no âmbito dos danos materiais quanto morais.”
No entanto, mesmo com a previsão legal, a prática revela um cenário preocupante. Muitos clubes ainda falham em cumprir essas obrigações, o que coloca em risco a vida e o futuro de seus atletas. Além disso, a alta competitividade do futebol moderno exige um preparo físico extremo, aumentando o desgaste físico e biológico dos jogadores, o que pode culminar em lesões graves e, em alguns casos, fatais.
O CASO JUAN MANUEL IZQUIERDO: RESPONSABILIDADE DO CLUBE NACIONAL?
O recente caso de Juan Manuel Izquierdo, jogador do Nacional de Montevidéu, que faleceu aos 27 anos após sofrer uma arritmia cardíaca durante uma partida contra o São Paulo, traz à tona a questão da responsabilidade do clube sob a ótica da legislação brasileira. Izquierdo foi diagnosticado com arritmia cardíaca aos 17 anos, o que levanta dúvidas sobre as medidas preventivas adotadas pelo clube.
Se aplicássemos a legislação brasileira, a responsabilidade do clube Nacional poderia ser considerada objetiva, conforme o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro. Isso ocorre porque o futebol é uma atividade de risco, especialmente para um atleta com um histórico conhecido de problemas cardíacos. “A responsabilidade objetiva impõe que o clube deve reparar os danos causados ao jogador, independentemente de culpa, desde que o risco da atividade tenha contribuído para o resultado fatal,” explica Kevin de Sousa.
No entanto, o fato de Izquierdo já ter sido diagnosticado com arritmia cardíaca desde os 17 anos introduz uma nuance importante. A responsabilidade do clube poderia ser mitigada se fosse demonstrado que todas as precauções necessárias foram tomadas para monitorar a saúde do atleta e adaptar suas atividades em função de sua condição. Sob a ótica da responsabilidade subjetiva, seria necessário avaliar se houve negligência por parte do clube ao não realizar exames regulares ou ao não ajustar o treinamento do jogador para minimizar os riscos.
“Se o clube tiver negligenciado essas precauções, a responsabilidade subjetiva poderia ser atribuída ao Nacional, colocando em evidência a necessidade de cuidados rigorosos com atletas que possuem condições médicas preexistentes,” argumenta Kevin de Sousa.
O CASO CRUZEIRO: UMA PERSPECTIVA DIFERENTE
Um exemplo relevante que contrasta com as decisões em favor dos atletas é o caso do Cruzeiro Esporte Clube, absolvido da condenação ao pagamento de indenização por danos materiais ao ex-jogador Diogo Mucuri, que sofreu um infarto agudo do miocárdio durante um treino em 2006. A Primeira Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) entendeu que a incapacidade do jogador para atividades físicas intensas decorria de uma doença congênita e não do infarto ocorrido durante o treino, eximindo o clube de responsabilidade por danos materiais.
Contudo, o TST manteve a condenação por danos morais, elevando a indenização de R$ 129 mil para R$ 200 mil, devido à falta de exames médicos preventivos adequados por parte do clube. O relator do caso, ministro Hugo Carlos Scheuermann, destacou que, de acordo com o artigo 34, inciso III, da Lei Pelé, é dever do clube submeter os atletas aos exames médicos necessários, e a omissão nesse dever foi considerada suficiente para justificar a indenização por danos morais.
“A decisão no caso do Cruzeiro é um exemplo claro de como a responsabilidade pode ser mitigada quando se trata de doenças congênitas,” comenta Kevin de Sousa. “Entretanto, a condenação por danos morais reflete a obrigação dos clubes em garantir que exames preventivos adequados sejam realizados, independentemente da origem da condição médica.”
PRECEDENTES JUDICIAIS E A OBRIGAÇÃO DOS CLUBES
A jurisprudência trabalhista brasileira já reconheceu, em diversos casos, a responsabilidade dos clubes em indenizar atletas que sofreram lesões graves ou foram afastados do futebol devido a problemas de saúde. Entretanto, o caso do Nacional e de Izquierdo demonstra que, em situações onde se identifica uma condição pré-existente como a arritmia cardíaca, a responsabilização dos clubes pode ser analisada sob a perspectiva da responsabilidade objetiva, mas com uma atenção especial à diligência do clube no monitoramento e gestão da saúde do atleta.
“A manutenção da responsabilidade, seja objetiva ou subjetiva, nesse caso ressalta a importância de um monitoramento contínuo e preventivo da saúde dos atletas,” argumenta Kevin de Sousa. “Os clubes devem estar cientes de suas obrigações e da necessidade de garantir a saúde e a segurança dos jogadores em todas as circunstâncias.”
PROTEÇÃO EM PRIMEIRO LUGAR
Diante dos recentes casos de morte por paradas cardiorrespiratórias em campo, e à luz de decisões judiciais que evidenciam a necessidade de cuidados preventivos, é imperativo que os clubes de futebol revisem e aprimorem suas políticas de saúde e segurança. Exames médicos mais detalhados, monitoramento constante da saúde dos atletas e um ambiente de trabalho que priorize a prevenção são medidas essenciais para evitar que tragédias como as de Juan Izquierdo e outros atletas se repitam.
“A legislação já oferece uma base sólida de proteção, mas é necessário que os clubes apliquem essas normas com rigor e responsabilidade,” conclui Kevin de Sousa. “A vida dos atletas está em jogo, e a prevenção é a melhor forma de evitar que o futebol, um esporte tão amado, seja palco de tragédias.”
A responsabilidade civil dos clubes não deve ser vista apenas como uma obrigação legal, mas como um compromisso ético com a vida e o bem-estar de seus atletas. É hora de agir e garantir que o esporte continue a ser uma celebração da vida, e não um campo de riscos desnecessários.